Entrevista: Kátia Montemór fala sobre bons e maus projetos - Hoje São Paulo
São Paulo, SP, 24/04/2024
 
15/11/2014 - 08h02m

Entrevista: Kátia Montemór fala sobre bons e maus projetos

Agência Hoje/Sandra Vieira de Mello 
Arquivo Pessoal/Kátia Montemór
  • Projeto de cozinha - residência

Atibaia (Agência Hoje)  - Paulista de Atibaia, Kátia Braga Montemór formou-se em Arquitetura em 1984, pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e é pós-graduada em Gestão Ambiental Empresarial, com ênfase nos resíduos da construção civil. Desde então trabalha com projetos e construções residenciais. Kátia adora o desafio de projetar pequenos espaços com qualidade e é adepta de projetos sustentáveis e do uso racional dos materiais simples e regionais.

Trabalhou na Prefeitura de Atibaia por quase 12 anos, a maior parte deles dedicada à habitação de interesse social. Na prefeitura atuou na urbanização e ordenamento de áreas invadidas e no planejamento e gestão dos projetos de conjuntos habitacionais do município, assim como na elaboração do plano municipal de habitação e em conselhos municipais voltados à habitação. Lutou em defesa do município e das 3.500 famílias que invadiram as áreas da RFFSA (antiga linha do trem).

Sempre envolvida com arte, a arquiteta é famosa pela participação nas manifestações culturais da cidade, em especial o Carnaval, quando marca presença no famoso Desfile dos Bonecões, defendendo sua “Nega Maluca”.

Atualmente, Kátia possui escritório em Atibaia, na Rua Bartolomeu Peranovich, 70 e, em meio aos seus muitos projetos e atividades, atendeu ao nosso pedido para falar um pouco sobre Arquitetura.

Agência Hoje - Como você vê a produção de Arquitetura atual no Brasil, em especial no estado de São Paulo?

Kátia Braga Montemór - No estado de São Paulo - e aqui incluo Atibaia - a reprodução equivocada de “cidades guetos” (condomínios fechados, conjuntos vilas, minicidades), a falsa segurança de viver, desobrigam o Estado, em relação à segurança, infraestrutura, equipamentos urbanos e de serviços. Outros países já viveram esses modelos e sabem que não é a melhor escolha e sim uma farsa: o viver no mundo da fantasia.

Também com o incentivo do governo federal, através do programa Minha Casa, Minha Vida, estão sendo criados enormes conjuntos habitacionais com espaços mínimos e distantes, sem transporte e infraestrutura adequada.

É preciso rever esse modelo de produção da arquitetura, e não deixar somente aos grandes ícones da arquitetura o encanto de belíssimos projetos, verdadeiras obras primas. Que todo cidadão possa ter e viver em uma obra de qualidade de projeto e construção. E fazer desse espaço a sua própria obra prima.

Como pode, por exemplo, o mesmo projeto de escola, ser construído em São Paulo ou na Bahia? Sem serem consideradas as características de cada local?

A globalização está fazendo da maioria dos arquitetos homens de negócio, que rendem-se ao cliente e ao mercado, abrem mão dos aspectos culturais e de identidade local e social.

O que podemos esperar da contratação pública de projetos de arquitetura pelo menor preço?

Os melhores arquitetos não se seduzem ao apelo da moda e da globalização.

Hoje - Qual a sua avaliação quanto ao desligamento dos Arquitetos do CREA e a criação de um Conselho próprio?

Kátia - Desde 1950 os arquitetos e urbanistas almejam um conselho próprio. Somente no final de 2010 (ocorreu) a grande conquista, através da aprovação da Lei que cria e regulamenta o novo Conselho de Arquitetura e Urbanismo - CAU, com o objetivo de disciplinar, ordenar a profissão dos arquitetos e urbanistas de forma mais adequada e separadas de todas as engenharias. Precisamos definitivamente conquistar a exclusividade de trabalhos que cabe á nossa profissão de arquiteto e urbanista. Ter a profissão reconhecida e difundida.

Esclarecer às pessoas comuns no que nossa profissão difere da engenharia e no que elas de complementam.

Porém, nesses primeiros anos do CAU, estamos passando por ajustes e nós profissionais, ficando desgastados com o vai e vem de erros e acertos. O atual CAU precisa ser menos burocrático e mais prático, fiscalizar ativamente o exercício ilegal da profissão e os desvios de função, principalmente nos órgãos públicos. Esclarecer os pontos de conflito entre a engenharia e arquitetura, de um modo simples e prático.

Só o tempo vai fazer do CAU um conselho de classe forte e atuante.

Hoje - O que a vivência de escritório de projetos acrescentou à sua atuação na área de Habitação Popular da Prefeitura de Atibaia?

Kátia - Ter a vivência e bagagem de muitos anos de escritório, me ajudou no sentido de estar apta a “multifunções”: projetar; aprovar; construir e gerenciar. Fez com que fosse mais fácil a relação com a população moradora das áreas menos favorecidas do município, principalmente as famílias invasoras das áreas públicas. Na luta pela desburocratização dos trâmites dos projetos e da aproximação da população nos conselhos correlatos e a sua efetiva participação das decisões

Hoje - O que a experiência com Planejamento Habitacional, dentro de um órgão público municipal, contribuiu na produção dos projetos desenvolvidos em seu escritório?

Kátia - Passei a conhecer melhor a máquina pública nas três esferas de governo: municipal, estadual e federal.

Enriqueceu meu conhecimento das legislações e a sua aplicabilidade no dia a dia e a aproximação com os órgãos fiscalizadores e de licenciamentos.

Entender os limites de competência e de trâmites, e acima de tudo, observar ainda mais as relações de entorno, de acessibilidade, mobilidade urbana que influenciam diretamente no dia a dia dos projetos e obras particulares.

Aprender a trabalhar, projetar espaços mais racionais sem desperdícios de espaço. O uso racional mínimo de conforto e dignidade dos espaços.

O quanto é importante realmente conhecer o modo de viver do futuro morador ou usuário do espaço projetado, para não ocorrer uma forte degradação desse espaço, após a entrega das chaves.

Hoje - Quais as vantagens e quais as dificuldades de exercer a profissão em uma cidade de 130 mil habitantes?

Kátia - Estou fazendo esse ano 30 anos de formada. Sempre trabalhei aqui em Atibaia, raros foram os trabalhos em outros municípios. Desse tempo, 12 anos foram dedicados à área pública.

Como vantagem, a proximidade com os clientes e com os outros profissionais, que compartilhamos e dividimos nossos trabalhos. O conhecimento dos quatro cantos da cidade, seus problemas e entraves e vocações. O comportamento da cidade como um todo, da quadra, do loteamento, do bairro, enfim de todos os elementos básicos e necessários para se elaborar um projeto.

A facilidade de locomoção.

Como dificuldade principal, não conseguir cobrar um valor justo de honorário profissional, numa cidade onde outros profissionais não valorizam e não executam seus trabalhos de forma digna e com respeito ao seu cliente e profissão.

A dificuldade em usar tecnologias sustentáveis e materiais alternativos. Combater o desperdício de materiais, incorporado a mão de obra local, a reutilização e reciclagem desses materiais.

Mudar a consciência da maioria da população em achar que só o “vizinho” tem que preservar o meio ambiente, usar as regras que disciplinam o uso e a ocupação do solo da cidade em que vivemos.

Conscientizar essa população que o uso ordenado da cidade e as regras de uso e ocupação do solo são o melhor caminho para termos uma cidade com qualidade para se viver.

Que o chique é ser simples nos traços, no uso e emprego dos materiais.

Hoje - Você faz parte da geração que viveu a transição da prancheta para a tela do computador. Que análise você faz dessa revolução na maneira de produzir e apresentar os projetos ao cliente?

Kátia - Relutei muito para deixar a lapiseira, papel manteiga, papel vegetal, tinta nanquim, lápis e tintas para colorir, que epopeia que era fazer e produzir as cópias dos projetos.

Me rendi às tecnologias de projetar na tela do computador, quando meu escritório estava fazendo um projeto comercial, pioneiro no uso de estrutura pré-moldadas no nosso município, e os escritórios de engenharia, parceiros na elaboração dos projetos complementares, começaram a pedir o envio do projeto base por e-mail, projetos elaborados nos programas de computador. Então o que fazer? De pronto contratamos um desenhista “cadista”, do qual ficamos reféns, pois mal sabíamos abrir o programa para a visualização dos projetos. Tinha muito medo de apertar uma tecla e “BUM” o projeto sumiu, só assim aos poucos fui aprendendo e me rendendo à tecnologia.

Hoje continuo não tendo a rapidez de um jovem arquiteto, porém a facilidade de apresentação, e de alterações, são os maiores pontos a favor desse novo modo de trabalhar. O uso da mesma base entre os diversos profissionais envolvidos e a rapidez de envio , através de um clic, o projeto pode chegar em outra parte do mundo...

Por outro dado, vejo que os profissionais da nova geração, entendem bastante das ferramentas e de toda essa tecnologia, sabem manipular e elaborar os recursos de animações, os passeios virtuais dos espaços projetados, mas deixam a desejar nos conceitos e proporções, na escala humana e a relação com o entorno. Toda essa tecnologia está formando especialistas, a curto prazo seremos especialistas de formação como os profissionais da saúde e vai existir no mercado de trabalho a falta dos “arquitetos de família”, da produção artesanal e individual da arquitetura.

 

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